

o que é corpo?
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Insira corpo aqui/
TAÇÕES
CONSTA
A LINGUAGEM

DO QUERER DIZER

Na esquina de uma rua silenciosa, enfeitada por pessoas sem pressa e carros plantados próximos às calçadas, uma parte do ambiente era escurecida por um grande prédio do condomínio em que Marília Hermes mora. Além de seu pai que a chama pelo seu nome completo, “Mary”, como prefere ser chamada, foi quem me atendeu na porta de entrada daquele arranha céu desconhecido, rodeado pelo céu azul e amarelo do lado de fora.



Um lance de escadas foi o suficiente para encontrar sua porta, que deu entrada para um banho de cores e detalhes de impressionar. O primeiro cômodo, onde a gravação aconteceu, tinha conteúdo de sobra para distrair os olhos. Eram roupas, plantas, remédios, fotos, gatos, tudo do mais comum e mais fantástico que tornava aquele lugar somente dela. Além dos outros cômodos, o local escolhido para a conversa foi a escrivaninha no canto da sala, uma escolha de seu agrado para a conhecermos. Além de sua própria presença em cena, com seu cabelo, piercings, tatuagens e roupa que falam um pouco sobre quem Mary é, o ambiente também aparece para tentar descrever mais uma existência única.







sem pilha
controle
Nasceu em Chapecó, onde morou até começar a fase adulta. Saiu da casa de seu pai no ano de 2010, aos 19 anos, para morar em uma república com novas pessoas. Posteriormente, teve que se mudar, ela foi expulsa do lugar. Outra mudança foi feita para morar com um casal de “sapatão”. No fim acabou só naquela casa, porque o casal se separou. Viajou para Curitiba para morar sozinha novamente e voltou para suas origens em Chapecó, novamente em um apartamento individual.

Falar sobre sua origem quase não deixou a câmera acompanhar os amplos gestos de seu corpo, que buscavam explicar as direções de suas vivências, lembranças. Como alguém que se mostrou expansiva durante nosso contato, aquele momento exalava certeza de quem Mary é. Eram os movimentos das mãos, as pausas para fumar, as risadas e o bingo de “vai tomar no cu”, contei sete até agora, que também me confortaram para eu me soltar, tentar ser genuíno. Vale ressaltar que essa observação está longe de querer romantizar ou criar um caso especial sobre isso. Esse é apenas um simples e comum momento de “foda-se”.


Existir como pessoa gorda que nasceu em 1991, uma geração de mulheres que ela descobriu serem compostas por questões corporais frequentes, foi um processo mais fácil em meio às pessoas gordas que estiveram em sua vida na família por parte de pai. Porém, o convívio pela parte materna não foi acolhedor da mesma forma. O fruto disso, depois de reafirmar sua existência pelo diálogo desde o “meu amor” ao “vai tomar no cu”, atualmente faz quase um ano que evita contato com essa parte familiar. Para Mary, fica claro que a forma como entendiam o corpo gordo era algo já construído e absorvido pela banalidade daquele lugar. Ela entende que não era necessariamente feito por maldade, mas saber disso não diminuía o incômodo que sentia apenas pela sua existência.
Essa é uma citação direta de sua finada mãe. Por mais que já tenha compreendido seu valor e individualidade ao crescer, o que ainda a incomoda é a falta de controle sobre o que o outro pensa sobre ela.
Volume da voz modulado pelo “outro”

MARY
A família é meio um saco de lidar, porque geralmente quando a gente vai tretar com família não vale a pena, porque sempre vai aparecer alguém dizendo “ai não, deixa ele, é o jeito dele, já ta velhinho”. Eu sou uma treteira notória, poucas ideias como os jovens falam hoje em dia, sempre fui muitíssimo poucas ideia, então geralmente as pessoas não tinham espaço para me agredir, porque eu já voltava com 5 pedras na mão antes da pessoa terminar a frase. Às vezes aparecia um “ a eu to preocupada com a sua saúde”, a galera ficava: vamos manter uma distância segura


Uma das formas de compreender seu corpo, e o que ele significa para si e para quem está à sua volta, foi pela vida sexual que se fez bastante ativa durante a adolescência e na fase de jovem adulta. Não apenas entendeu a importância que o sexo tem na troca de afetos e prazeres entre diferentes pessoas, mas também descobriu que, se este não for feito pelos motivos certos, a relação consigo mesma pode ter efeito contrário.
Para Mary, esse “outro” pode ser o próprio senso comum, um fato tão cravado atrás dos olhos, que o que só enxergam é uma reprodução, um eco.



OUTROOUTRO
OUTROOUTRO
OUTROOUTRO
OUTROOUTRO
OUTROOUTRO
Porque você é assim?
A figura do “outro” pode vestir diferentes máscaras em sua vida. Seja aquelas pessoas que estão na rua, os inconvenientes no trabalho, a família, os “véios do terminal”, ou na pessoa que olha para ela e pergunta:


corpo
ferramenta
O que o corpo tem a dizer ditado por aquele que o escuta
Sua performance utiliza do corpo para a interpretação de cenas sobre quaisquer assuntos, seja de forma mais literal ou abstrata. Nisso, a partir de gestos, expressões faciais, vestimentas e outros recursos, o corpo se torna um suporte para transmitir sentimentos, interpretar personagens, se comunicar das mais diversas formas. Sua primeira apresentação para um público foi em 2011 com o auxílio de dois amigos, mas esta performance não a satisfez. A partir daí começou a fazer novas apresentações sozinha, seja de forma presencial ou em exibições de vídeo quando havia necessidade, principalmente na pandemia.
No processo artístico de suas produções, aplicar conceitos de forma literal é seu foco. Diferentemente de criações que partem de um conceito inicial, as suas têm início pelo visual. É a partir das primeiras imagens na cabeça que Mary entende qual conceito irá traduzir, assim se faz um processo de descoberta. Já falou sobre sexualidade, saúde mental, referências a filmes de terror ( seu tipo preferido) e outras tantas temáticas, mas, apesar do que os outros podem pensar em um primeiro momento, nunca falou especificamente sobre o corpo gordo. Porém, novamente pela falta de controle sobre o outro, sua aparência não deixou de ser o foco das atenções nos comentários de quem assiste suas apresentações.

Com o andar da conversa, a luz da tarde era trocada pelos postes que ligavam para dar início à noite. Entre questionamentos, risadas, pausas e algumas tragadas, o lixo que guardava as bitucas de cigarros em sua frente mostrava o passar das horas tal qual o relógio das telas em nossa volta. Depois da pausa, o corpo retornava a falar. Corpo este que sempre teve muita relação consigo mesma, uma fonte de diversos diálogos pela sua vida. A principal língua: A arte.
“Desde que me conheço por gente”. A arte começou em sua infância no teatro e continuou na vida acadêmica, seja ao se formar em Audiovisual na Unochapecó em 2012, ou, no meio tempo dessa graduação, quando se formou no curso de Artes Cênicas em Joaçaba, em 2010 na Unoesc. A partir de seu amadurecimento como artista, percebeu que a linearidade do teatro já não fazia mais sentido para sua expressão, pensamento que partiu principalmente da sua professora Inaja Nekel. Quando demonstrou dúvidas sobre qual caminho seguir artisticamente, sua professora apresentou a artista Marina Abramovic que mostrou a área da performance.
“É como se eu tivesse encontrado uma coisa que eu queria, que era a coisa que eu estava precisando, só que eu não sabia o que era.”





SUBPARCELA
Desviar e atrair olhares:
o gordo resumido a aparência
A vista da cidade pela sacada, enfeitada por um varal de roupas e uma caixa de areia de seus gatos, era marcada por uma avenida que dava espaço para carros apressados, rodeando o posto de gasolina atrás de onde mora. Ao descrever aquele lugar, Mary relembrou que a janela tinha vista privilegiada ao banheiro de trás do posto, uma cômica forma de conseguir histórias da privacidade daquele lugar.
Tão simples aquela descrição, enfeitada por rolos de papel higiênico e descargas ocasionais, ao amadurecer e se entender, o corpo gordo para Mary se tornou algo banal, apenas mais uma característica tão comum quanto a altura, a cor dos cabelos ou o tamanho do nariz. Porém, mesmo que a auto intitulação e compreensão seja algo já firme e resolvida em sua vida, ainda assim o lado de fora parece não se esforçar para acompanhar sua mentalidade. Caso seu corpo não seja julgado pela ofensa, o desconforto ainda pode estar presente quando o sentimento é a pena. Isso vem daqueles que tentam ser gentis com Mary, por se sentirem desconfortáveis em admitir algo tão comum quanto a constatação de um corpo gordo.









Desde sua volta para Chapecó em 2018, a única vez em que seu corpo é de fato parte de sua identidade é pela relação que tem com o ciclismo. Ao retornar a sua cidade natal, a rotina girava em torno do ambiente de trabalho e de sua casa. De casa para o trabalho, e do trabalho para casa, era uma rotina repetitiva. Porém, há mais de um ano começou a andar de bicicleta por influência de seus amigos, o que trouxe muitos benefícios para sua vida social e saúde mental, tanto que ajudou com os transtornos psiquiátricos que possui. Porém, novamente como uma intrusão do “outro”, quando começou a pedalar recebeu diversos elogios, “como se de repente tivesse começado a botar minha vida nos eixos”.

Presente EU
Seja quando sua existência desvia ou atrai olhares, não importa quem Mary é para além de ser um corpo gordo. Principalmente na mídia em geral que consome, ela afirma que qualquer que seja a minoria, elas sempre serão tratadas a partir do seu “problema”, uma existência que somente é visível quando pode ser conteúdo, ser um produto de consumo. Portanto, ser gordo é falar sobre os problemas de ser gordo, e nada a mais.




Já tínhamos nos conhecido de canto de olho nos rolês nas ruas de Chapecó, principalmente quando este é um lugar onde nossos amigos e espaços de aceitação podem ser encontrados nos fins de semana. As trocas com quem nos entende, ou pelo menos se preocupa em tentar, é um acolhimento, é pertencimento.
O contato com seus amigos se faz um ambiente importante de aceitação e compreensão, principalmente por ser um convívio marcado pela diversidade e respeito por cada processo individual. Da mesma forma, seu trabalho atual também acontece em um grupo saudável que respeita suas características. Como professora de ensino fundamental de escola pública, em um ambiente formado principalmente por educadoras que são mulheres mais velhas e gordas, o respeito e aceitação de quaisquer características são prioridades para o bem estar das crianças, adolescentes e colegas de trabalho.


Onde tu acha atualmente sua validação?


Em ser a pessoa que eu sou.
e quem você é?




Em saber que eu sou uma pessoa que eu amo o que faço, sou boa no que faço, eu tenho qualidades que não tem nada a ver com minha aparência física, que eu faço bem para as crianças que estão comigo, para as pessoas que estão comigo, que eu consigo dar carinho para as pessoas, estar disponível para as pessoas que eu preciso, embora às vezes é difícil lembrar que preciso estar presente para mim também…


Porque é difícil estar disponível para você ?


Porque hoje em dia isso acontece com todo mundo, isso não tem nada a ver com questões corporais, é o mal do século, a gente se acostumar a ter que estar para o outro e ser duro para a gente


Você acha que esse é o século da servidão?


Obviamente. A gente precisa fazer mais do que a média só para ter um emprego e conseguir pagar as contas da casa, a gente tem uma cultura que a pessoa que fala demais dos seus feitos ou de suas qualidades ela é arrogante



