lembrar de, quando mudar o estilo dos vídeos, colocar as legendas e a narração com áudio

Dentro, fora e no meio, o peso vai além de apenas uma medida corporal, ele se faz uma medida de significâncias

fingir
estar
socializar
atuar
a
b
c





Eram 17h de uma sexta-feira quando cheguei na casa de Alex. Na rua, algumas crianças andavam de bicicleta, jogavam futebol e contavam causos umas para as outras. Elas aproveitavam a tarde morna depois de voltarem da escola. Um caminho alternativo para sua casa era por uma pequena porta lateral, um pouco gasta de outros rolês no quintal de trás. A calçada estava pintada de tons quentes, o sol era trocado às pressas pela lua, como se o teatro estivesse atrapalhado em trocar as cenas. Encontrei Alex recostado em uma parede junto a um amigo em comum, ambos com cigarros entre os dedos. Joguei de qualquer jeito a tralha de equipamentos que levei para a gravação e roubei um abraço bem dado para cumprimentar e agradecer, um obrigado por me deixar adentrar tantas portas naquela noite, seja de sua casa ou de sua intimidade.




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Preocupado com o frio que chegava, Alex esquentou água e ofereceu café para acompanhar na entrevista, afinal, mesmo que ainda estivesse claro, já dava pra ver a fumaça que se enrolava em cada palavra, cada frase. Enquanto a conversa viajava entre o trabalho, os estudos, o dia a dia e a entrevista que estava próxima, algumas figuras passaram pelo ambiente. Sua mãe parou para se juntar à conversa. Seu gato laranja passou entre as nossas pernas e das cadeiras. Alguns passarinhos do quintal já procuravam por abrigo para se aquecerem. Decidimos montar um cenário perto da parede de uma casa dos fundos, um lugar reservado para mais privacidade. Carregamos um banco de madeira por entre bagunças arrumadas espalhadas pela grama e, para preservar sua identidade, uma luz de led bastou em meio àquele breu. Dava pra sentir a tensão um do outro. Não era mais uma conversa entre amigos. Afinal, cada relato, cada pequena expressão e cada pausa era julgada pelo olhar da câmera.
Encenamos um programa estilo Marília Gabriela ou Jô Soares. Era um quebra galho para tornar as coisas mais leves. Mesmo ao falar sobre um tema tão sério e importante para nós, ainda assim, o alívio cômico se fez necessário, algo sincero a se agarrar. Entre piadas, imitações e risadas, o lugar nada aconchegante para o encontro, envolto pelo frio, em uma escuridão dura como o banco improvisado de madeira, ficou em foco pela concentração e comprometimento. O ar quente dos pulmões de cada fala formava vultos por entre a luz forte, dançava em cada entonação. Parecia que até a lua tinha se escondido para dar privacidade, porque o que se via era apenas o olhar da câmera e as marcas sinistras, um tanto cômicas, que as sombras faziam nos corpos em cena.

Então, já discutimos antes sobre nossas dúvidas sobre esses espaços que ocupamos. Já tivemos certeza e outras vezes nem tanto. Então começamos assim.
Você é uma pessoa gorda?
EU


BLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLABLA
Sim, eu me vejo como gordo na maior parte dos espaços que ocupo, então sim.
ALEX


O que há para além de seu corpo, se isso é só o que é visto?


OUTRO????????
Isso veio de sua mãe, aos seus 14 anos. Os desafios de aceitação e compreensão de seu próprio corpo a partir da adolescência foram atrasados dentro de sua família, ambiente que, muitas vezes, pode ser uma grande fonte de insegurança corporal.
O som da suposta preocupação com sua saúde se agarrou em sua mente. Assim, a sugestão foi acatada, lhe foi apresentado o medo. O impacto das palavras de sua mãe veio acompanhado de ataques de pânico, que posteriormente tratou por um ano em uma psicóloga. O acompanhamento o fez entender que aqueles foram episódios de estresse pós-traumático. Junto com o baque, se obrigou a mudar alguns hábitos que não faziam bem à sua saúde, mas que não tratavam sobre seu corpo gordo, como a bebida e o fumo. Nunca tentou entender os motivos dos comentários de sua mãe. O tempo que procuraria os porquês foi usado para se barrar, proteger, para tentar não ser afetado por aquelas e outras palavras, porque sabia que viriam em algum momento.
Descobriu que, com o título do “gordinho lá”, se carrega nas entrelinhas subtítulos de violência, que buscam negar sua individualidade. A pergunta lançada por entre o feixe de luz atrás de Alex foi, afinal, quem é esse “outro”? Entre tantas e tantas pessoas que julgam, observam, que nomeiam, porque o “outro” não pode ser nós mesmos? Porque nós não podemos dizer quem devemos ser?
OUTRO????????
OUTRO????????

VOCÊ TA MUITO GORDO
PRECISA FAZER MAIS EXERCÍCIOS
PRECISA PARAR DE COMER
COMER MENOS

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Já cheguei a passar uma semana comendo uma maçã e tomando água, para tentar resolver isso. Acho que tinha 16 na época, me neguei a comer por 7 dias, e obviamente terminei no hospital no fim da semana.






Conforme a escuridão se enrolava em cada parte de nosso corpo, as palavras que escapavam se tornaram um grande tricô de individualidades. A voz de Alex costurava e remendava por entre o que eu já havia concluído, a partir da minha vivência também como pessoa gorda. O peso, tanto físico quanto de valor, era diferente, era único, mas ainda assim tinham desejo de se mesclarem um com o outro. Tanto naquele banco de madeira quanto aqui nas telas, constantemente se criam novas ideias, novas perspectivas.
Pelo bem dos outros, mas nunca de si mesmo






EEra curioso como a luz dava novos sentidos para a conversa. Do lado das páginas, só existem as silhuetas dos corpos ali presente. Da minha perspectiva, apenas o lado esquerdo de Alex era iluminado. Em nenhum dos ângulos conseguimos o ver completamente. No fim, seja com ou sem luz, nunca conseguimos ver alguém completamente. É a partir das palavras que as sombras não nos contaram, que se reafirma o tamanho da individualidade que cada um carrega, impossível de ser vista a olho nu. O que ficou em foco naquele momento era o olhar, apenas um ponto brilhante observado por mais lentes do que apenas a da câmera em nossa frente.
O foco do ambiente passou para a conversa, um relato sobre a origem, sobre o momento que Alex soube que é uma pessoa gorda. É em meio às descobertas de seus entremeios, seja de sexualidade como uma pessoa bisexual, gênero ao ser uma pessoa não binária, ou seus outros aspectos individuais, é durante as mudanças da puberdade que seu nome passa a carregar um novo sobrenome, intitulado pela intenção da ofensa.

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Ser julgado pelo seu corpo, pela sua aparência, foi algo que afetou as relações com quem está à sua volta, quando diz respeito a como Alex vê sua própria imagem em relação ao outro. Momentos que deveriam o deixar confortável trazem auto culpa, fruto da presença de seu corpo. Seja em relacionamentos de amizade ou romance, o afeto é barrado pela insegurança, principalmente em momentos íntimos. Seu corpo, ensinado que não é válido, que não é atraente, que não é útil, não autoriza de o verem por inteiro. Seu corpo, agora em menos movimento que antes. Sua fala, carregada. Para Alex, o motivo desse medo é o pensamento de que seu corpo não seria digno, não seria suficiente para o corpo “melhor” da outra pessoa. Porque se ele se revelar, isso seria um insulto.
Por mais que o ambiente que criou dentro de si tenha seu próprio processo de aceitação, protegido por máscaras que usa para performar nos diferentes ambientes, as influências do exterior ainda causam grande impacto na sua autoestima. Alex reconhece que tiveram momentos de sua vida que conseguiu “tacar o foda-se”, se explorar, se gostar. Porém, atualmente, neste ano, ele não se gostou. Não se gostou porque, novamente, quando tentou ser bonito fizeram pouco caso disso, fizeram piadas, não o levaram a sério. Não apenas de fora, mas inclusive por parte de seus amigos. Não externalizou suas insatisfações, mas se sentiu ruim, insuficiente, teve vergonha, sentiu que implorava por atenção.


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No caminho para o quintal, demarcado por um caminho de lajotas espalhadas pela grama, um caminho de roupas estendidas no varal enfeitavam o ambiente. De diferentes tamanhos, diferentes cores, texturas e caimentos. Tal qual aquela cena, uma consciência em meio à conversa, cada pessoa em sociedade se faz imensamente diferente, isso é a diversidade. Porém, ainda assim são criadas caixinhas para determinar onde cada um se encaixa, ditar as roupas a serem vestidas. Para ser visto, para existir, é necessário se moldar, mesmo se doer, for desconfortável ou desesperador.




Isso é o que é esperado para que pessoas gordas e outras minorias sejam aceitáveis, para que tenham utilidade, para compensar seus pecados de apenas SER. Em todo lugar que observamos, seja na TV, nas mídias sociais, nas revistas, na maioria dos espaços, a representação dessas existências se resume pela sua imagem. No caso do gordo, este só é visto a partir de seu corpo. Para Alex, este é taxado como cômico na grande parte das vezes. Na mídia e no dia a dia ele é o palhaço de circo, faz parte de toda piada depreciativa. Cômico não necessariamente para provocar o riso, mas para reafirmar regras, reafirmar leis, causar o medo que sentiu o gosto quando mais novo.
ALEX
É uma performance compensatória que é atribuída. As pessoas dizem que a gente tem que ser engraçado para compensar o fato de que a gente não é atraente, competente ou suficiente, então a gente veste essa roupa que eles dão, a gente permite que essa roupa seja dada, e eu encontrei o lado da intelectualidade para melhorar minha forma de comunicação, para que ninguém atravesse a barreira que criei para não ser atingido por isso.


Violentos e silenciosos, Alex reflete sobre os ataques da sociedade contra o corpo gordo, sobre o quão velado isto pode ser. Muitas vezes, as próprias vítimas podem demorar para perceber a profundidade das feridas. Em espaços como a universidade ou trabalho, no mundo adulto considerado civilizado, não há coragem de gritar aos ventos o que pensa. O ódio, o desprezo, o nojo, todos os sentimentos que já se perdeu o sentido de sua origem, são jogados para debaixo dos panos. Tudo é feito nas entrelinhas, escondido como um caçador silencioso.
Ser gordo é ser obrigado a encontrar seus apesares. Junto da cobrança de performance, de se portar e se transformar em algo já programado, é preciso compensar sua existência. “Você é bonito, mesmo sendo gordo, você tem um rosto lindo, você se veste bem”. São essas violências veladas que reafirmam sua posição.


Muitas vezes, os desejos que os forçam a digerir não condizem com suas vontades, mas são esses os pesos medidos em troca de aprovação, de aceitação. Alex não sabe exatamente de qual lugar surgiu essa busca, se foi na infância, adolescência ou outras portas mais fundas. Mesmo como alguém aceito em bolhas, em realidades que reconhecem seu valor, ainda assim um zumbido chato na orelha sempre apita, um barulho que relembra do quanto necessita ser validado.


Muitas vezes, os desejos que os forçam a digerir não condizem com suas vontades, mas são esses os pesos medidos em troca de aprovação, de aceitação. Alex não sabe exatamente de qual lugar surgiu essa busca, se foi na infância, adolescência ou outras portas mais fundas. Mesmo como alguém aceito em bolhas, círculos, em realidades que reconhecem seu valor, ainda assim um zumbido chato na orelha sempre apita, um barulho que relembra do quanto necessita ser validado.
ALEX
Eu preciso conscientemente me relembrar com bastante frequência sobre meu corpo e aceitar ele. Fazer isso é legal, é válido, é saudável. Indiferentemente dos corpos que temos, continuamos sendo extremamente válidos, sendo fodas para caralho, atraentes, inteligentes, estudiosos. Mas essa aceitação sempre demanda muito tempo, energia e nos obriga a confrontar sentimentos negativos sobre nosso corpo, por isso pode dar tanto medo.



Você não sente que a gente nem é levado a sério, não dá pra ser levado a sério sendo pessoa como nós. isso te ofende?
Eu não sei se talvez eu tenha normalizado isso, e saber que eu normalizei isso me machuca.
Talvez eu esteja no processo de normalizar isso, e eu to me odiando por estar normalizando isso, eu não quero isso.
Porque ninguém fala que a gente é gordo na cara, ruim, feio….
Talvez eles realmente não pensem assim, talvez seja uma coisa tão nossa, tão traumatizado que a gente é por isso, que talvez realmente eles não pensem assim, eu acho que eles não nos veem como menos por isso, talvez não seja uma questão para eles.
Esse peso é tão grande para a gente, que a gente molda o que a gente pensa que os outros pensam. Aí a gente vai criando coisas…
Cenários, Cenários Cenários














E a gente nunca tá vivendo, sempre tá imaginando, e a gente tá sempre se contradizendo.
A gente é contraditório, tá tudo bem.




Depois de bastante tempo de conversa, percebemos que a câmera tinha parado de gravar. No momento em que isso aconteceu, se desmanchou a posição ensaiada no banco de madeira para dar lugar a uma cena mais confortável. Já não havia uma câmera para nos observar, então não importava enquadramento, já não importava conduta. Assim, nos espreguiçamos e ficamos mais livres no espaço. Parecia que a falha da câmera tinha nos presenteado com mais sinceridade, mais leveza.
Em meio à compreensão de se entender como pessoa gorda, o processo dos seus entremeios, de seus detalhes ainda se mescla em dúvidas para Alex. O que e quem categoriza seu corpo como gordo? Qual o tamanho que precisa ter? Qual o peso mínimo? Qual nível no IMC (Índice de Massa Corporal, cálculo entre peso e altura). Isso não pode ser baseado em auto intitulação? Ou apenas vale quando é o outro que dá os nomes, e ele somente acata? Ao ser jogado de um lado para o outro, empurrado para títulos e mais títulos, conceitos que tentam empurrar goela a baixo, quando finalmente Alex se entende e busca se compreender como pessoa gorda, é nesse momento que aqueles que o ofendiam agora se sentem ofendidos.

Reconhecer o corpo que estou, o corpo que sou

ALEX
Às vezes é vendida a ideia de que temos que ser essas coisas, é vendida, forçada, regurgitada e vomitada na nossa cara que a gente precisa ser essas coisas. É perigoso quando a gente compreende que a gente não precisa ser essas coisas e começa a ser o que a gente quer ser, isso muito frequentemente é visto como má educação, forçação de barra, quando você se nega uma coisa que não quer ser, e você foi reconhecido muito tempo sendo isso, aí nega essa barra que estão colocando em você, você diz não, e de repente é o vilão.




Por mais que em toda sua vida sempre foi gordo em todos os lugares, mesmo ao se ver como gordo e receber esse título para si, estar bem com esse fato, ainda assim não deseja atribuir isso acima de pessoas maiores que ele, por receio de roubar sua vez e voz. Ao dizer isso percebe que, muitas vezes, a cobrança por performance se envolve na pessoa mais gorda do local, uma norma de conduta que atrai os olhares para o “exagerado”. Quando discutimos sobre isso, por mais que reconhecemos nossas dificuldades como pessoas gordas, ainda assim fica claro a influência do tamanho físico nos ambientes sociais. Isso é um fator que altera a forma que pessoas gordas são vistas quando estão em comparação no mesmo espaço.

Muitas vezes, o pertencimento se torna uma série de listas que é preciso preencher para fazer parte de certo grupo, por mais que isso seja novamente imposta de forma velada. Porém, por mais que algumas caixinhas sejam marcadas, se não assinar todas, é perdido o direito à identidade.


- Nós somos pessoas específicas entre cada um de nós, todos temos algo em comum, mas todos temos muitas diferenças, nós não nos encaixamos sempre na caixinha do doente, sabe? Embora tenhamos sim questões de obesidade que precisam ser avaliadas em nível de saúde pública, mas existem limiares e coisas específicas para cada ser humano, não podemos colocar todo ser humano gordo no mesmo lugar. Às vezes a gordofobia se veste de empatia, é muito perceptível como a gordofobia tenta falar que é pela sua saúde, e nem sempre é pela tua saúde, quase nunca, ninguém é tão altruísta assim a querer a tua saúde tanto assim, ou talvez seja uma visão minha.


